quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Quando a comida tapa vazios interiores

Apetece-me falar-lhe de três coisas no Dia Mundial da Alimentação, que serviu de inspiração a esta edição especial do Destak .
A primeira é que a maioria de nós tem muita sorte em nem sequer conseguir imaginar o que é passar fome. Existem 925 milhões de pessoas, entre elas 55 milhões de crianças, que morrem por falta de comida. Pior ainda, a sua situação agravou-se com a decisão tragicamente verde de canalizar 100 milhões de toneladas de cereais para a indústria dos biocombustíveis, que paga mais. Falo nisto não para que se sinta culpado por ter comida no prato, mas para recordar a necessidade de mais solidariedade:
a ajuda internacional em 2008 desceu ao nível mais baixo em 40 anos. A segunda é que ironicamente deste lado do mundo temos comida a mais. E o pior é que a comemos! O resultado está à vista nos números crescentes de gente que sofre de obesidade e de doenças cardíacas ligadas a uma dieta demasiado rica. Por outras palavras, por aqui há gente que morre por ter o prato demasiado cheio. Não é uma questão de gula, mas uma consequência de estarmos ancestralmente programados para armazenar o máximo de energia possível, de forma a sobreviver no tempo das vacas magras, que acabava sempre por chegar. Só que não chega, e tal como os hamsters, vamos enchendo as bochechas sem parar. A única solução, dizem os especialistas, é convencer o corpo de que se atravessa um período de fome, levando-o a desligar o apetite e a queimar o que acumulou. Na prática passa por entender que não é preciso comer até «encher», como nos obrigavam em crianças (a despensa cheia é um fenómeno muito recente).
A terceira está ligada ao facto de misturarmos alimentos e emoções. A comida foi usada como recompensa e como símbolo exterior de amor. Deram-nos rebuçados quando chorávamos ou esfolávamos um joelho, e hoje quando nos sentimos tristes recorremos à comida para encher vazios, para colmatar o tédio. Num quadradinho de chocolate tentamos encontrar o colo da nossa mãe. O ciclo só se rompe perante um destes ataques de fome se nos perguntarmos que buraco queremos realmente tapar. E aí podemos partir à procura do verdadeiro Graal, que não é decididamente uma bola de berlim.


ISABEL STILWELL (Editorial jornal "Destak" de 16.Out.2008)

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