quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Sud Express – Uma inesperada viagem no tempo


Manhã soalheira, perdida num recanto do nosso país, longe de imaginar o que me esperava. Entrei vagarosamente na estação. Não me lembrava da última vez que andara de comboio, mas a ideia agradava-me. Mais não fosse pelo inesperado da viagem.

“Para Lisboa s.f.f”.
“No Sud Express ou no Intercidades?”, ouviu-se.
“No primeiro que passe” respondi.
Pois bem, calhara-me o Sud Express.
Aguardando no cais, percorro a memória com alguma dificuldade, dado o cansaço acumulado, agravado pelo frio que aos poucos me tolhia o pensamento.Ainda assim, rebusquei nas memórias aquela designação, e ocorreu-me:Sud Express?
O histórico comboio que outrora levou Portugal em direcção à Europa?O Sud Express que eu lera nos manuais, das emigrações e dos exílios?O famoso comboio que eu ouvira falar dos inter-rails das décadas de oitenta e noventa?A viagem que inspirou o filme?
Esperar para ver.
Encostada à parede, deixo que o sol outonal me aqueça o corpo e a alma.Fecho ligeiramente os olhos, mas logo soa ao longe o ruído do comboio que aguardo.Chega ao cais número cinco, como previsto, às 09h56.
Descem alguns passageiros, com a ânsia de quem chega ao destino.Sobem novos passageiros, com a curiosidade de quem embarca num velho pedaço de ferro, num velho pedaço de História.
Parece-se com o esboço do Sud Express que me veio à memória, ainda que antiquado, sujo e ruidoso.
Estreito corredor a fora, busco um qualquer compartimento vazio.Corro as cortinas de um laranja desbotado e deixo entrar o sol. Encosto-me e descontraio. Espera-me uma viagem de uma hora, sem paragens até ao destino.Apetece-me dormir, mas luto contra o cansaço. Quero desfrutar a viagem, seja lá o que isso for.
O comboio arranca, com a dificuldade e lentidão que se espera de um centenário. O trémulo Sud Express reinicia a viagem e eu deslizo pelo banco a baixo.
Um homem de meia-idade bate no vidro da porta de correr e pergunta se pode partilhar comigo o compartimento.
Que dejá vu . Soava-me a filme.
Murmuro um Sim, acompanhado com um sorriso amarelo qb.
Munido de um tripé e gigantes objectivas fotográficas, instala-se no banco da frente.Mete conversa, outra coisa não seria de esperar.
Se me importo que estique as pernas e as apoie no banco. Não.
Se faz paragens até Lisboa. Pelo que sei, não.
Se tenho lume. Não fumo.
Se estou a gostar de ler aquele livro. Mais ou menos.Se costumo viajar de comboio. Não.
Se não acho que em vez do TGV, seria mais certeiro e menos megalómano reabilitar as linhas ferroviárias existentes. Acho.
Perante tamanha amabilidade, resolve dedicar-se a ler um qualquer semanário.Em boa-hora, talvez assim eu possa contemplar o cenário lá fora.
A janela era um ecrã sem direito a zapping.
Paisagens de um verde acastanhado iam alternando com a solidão das casas que o sol iluminava sem grande êxito. Uma estrada vazia, ao longe. Um aglomerado de casebres parecia perdido num vale escuro e húmido. Os campos de cultivo, descurados, votados ao esquecimento, povoados de ervas daninhas. Nem uma pessoa a vislumbrar.
Aos poucos, o cenário começava a mudar. A periferia de Lisboa, triste, poeirenta, pardacenta, grafittada, gradeada.
Abranda o ritmo quando se avista a moderna Gare do Oriente, em contraste com o velho comboio.
Desembarcam alguns, seguem os resistentes.
Ao fim da manhã de domingo, chega a Santa Apolónia.
Com vagar, despeço-me do companheiro de viagem com um sabor amargo que não me é característico.
Do nada, beija-me a mão e despede-se com um sorriso que lembra o meu avô.Ou seja, afável, mesmo quando não é correspondido.
Desço para o cais. As plataformas estão praticamente desertas, silenciosas. Os meus olhos vêem-nas a preto e branco, numa versão de outros tempos.
Um filme, esta viagem.
Como aquele a que o Sud Express já deu nome.

Publicada no blog: agre-e-doce.blogspot.com/2007/11/crnica-de-um...

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