sexta-feira, 26 de setembro de 2008

A decomposição da Esquerda.


No ano 2000 havia, na Europa, onze governos socialistas ou sociais-democratas. Actualmente, subsistem três. Tomo as definições "socialistas" e "sociais-democratas" com a prudência suspeitosa que elas exigem. Historicamente, têm perdido a matriz original e os seus dirigentes, na esmagadora maioria dos casos, envolvem-se em escândalos, forjam alianças com as forças políticas mais tenebrosas, tripudiam sobre a ideologia, mandaram as convicções às malvas.

Nunca é de mais repetir estas verdades.
A geração "socialista" que tomou o poder a partir da década de 80 é uma desgraça. Mesmo Zapatero, apontado como exemplo quase único, tem dias. Em Portugal, a prática do PS é o que se sabe. E este Governo só não é escorraçado, porque o adversário directo, pouco diz do que pretende fazer, e esse pouco é assustador. À Esquerda, o PCP sobe, como indicam as sondagens, advertiram os "politólogos" e impõe o eleitorado. A intensificação da "violência económica" resulta da perplexidade social e da abdicação política em favor do "mercado."Na Europa, os meios populares, base de apoio dos partidos de Esquerda, manifestam uma inquietada desconfiança. De um modo quase generalizado, os partidos comunistas são uma reminiscência, com escasso poder e reduzida influência. A ascensão da Direita dimana dessa absoluta incapacidade de os "socialistas" em encontrar soluções. É uma deriva que se arrasta há quase três décadas. E a queda dos governos europeus, assinalados como de Esquerda, colocou, por exemplo, no poder da União Europeia as forças mais conservadoras e, até, reaccionárias. A Europa não possui resposta, como um todo, para as crises que se desenvolvem e multiplicam, porque não previu as modificações, se regozijou com os prestígios do "mercado" e orientou-se para a acção única do pensamento único.Jean-Gabriel Fredet, no último "Nouvel Observateur", esclarecia que a crise da União Europeia podia ser entendida como o fim de um modelo social de que a Esquerda quisera dotar a Europa, esquecendo-se, ou ignorando que não há associação possível entre as abruptas leis do mercado e as imperiosas necessidades redistributivas.A verdade é que os "socialistas" não estão nada interessados em reflectir sobre a mudança do mundo. São, apenas, os servis gestores do capitalismo mais selvático. Naturalmente, esta situação não pode continuar. E dá-me imensa vontade de rir os "comentários" de preopinantes portugueses, sobre as virtudes (inclusive "morais") do neoliberalismo, apontando a infausta experiência de Tony Blair como exemplo de "pragmatismo." O "pragmatismo" é a expressão que tem encoberto as traições mais vis, e permitido a abundante criação de um grupo de estipendiados. A vergonha e a indignidade chegaram, já há anos, aos jornais, às rádios e às televisões.Há dias, conversando com um dos meus amigos mais estimados, o grande jornalista João Paulo Guerra, concluímos que o vazio ético, a capitulação profissional que lavra, como endemia, no nosso país, são reflexos da decadência da Esquerda e desse sentido individualista de tratar da vidinha que se tornou numa carta-de-alforria para a sobrevivência. Anotámos os nomes daqueles que passam de directores de jornais para directores de jornais e daqui para a direcção de agências noticiosas, para assessorias, para secretariados. A maioria não sabe escrever uma notícia, jamais assinou uma reportagem, confunde crónica com artigo e editorial com comentário, veste-se de igual modo, move-se com ar grave e semblante marcado. Afinal, são, apenas, sapatos Gucci, fatos Massimo Dutti, e cabelo cheio de gel. Alguns, cuja mediocridade é pavorosa, treparam à direcção de importantes diários. O resultado foi catastrófico.
A assunção desta mediocridade, que faz jornalismo através de telefonemas e de nomes em agendas, devolve a imagem da actualidade portuguesa. A classe política que nos dirige é doentiamente insignificante: nem sequer sofrível. Olhe o Dilecto para aquelas caras, tenha a paciência de os escutar, de os ler, de assistir a esse circo de comentadores de televisão, sempre os mesmos ou tocadores do mesmo solfejo. Aqueles que se insurgem são apodados de ter "mau feitio", o modo de se assinalar, negativamente, a grandeza de carácter. As perseguições a jornalistas livres, que se não conformavam com a situação, criada a partir da década de 80, foi terrível. Grandes profissionais de Imprensa foram para o desemprego ou abandonaram a profissão, sem saídas para desempenhar o seu trabalho, as suas funções, a sua vocação.
A educação cívica, que compreende a aceitação das vozes discordantes, foi dizimada por uma casta de oportunistas. E, quase insistentemente, estimulada pelos partidos que se dizem "democráticos." O processo de decomposição da Esquerda, mas, também, da Direita, esta Direita é risível, pela soberba e espantosa iliteracia, invalidam qualquer possibilidade de restauração. Mas renovar, como e com quem? Descobrir gente honrada e competente no interior dos partidos? O busílis está aí. Porque os partidos converteram-se em agências de empregos, desprovidos de ideais morais, com clientelas domesticadas porque as sinecuras e o nepotismo são compensadores.


Baptista Bastos
(Jornal de negócios de 19.09.2008)

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