quarta-feira, 17 de setembro de 2008

E o povo a ver passar os comboios...


O governo anunciou que vai publicar a lista dos “insolventes crónicos”, o que em linguagem de gente é suposto ser uma lista de caloteiros, empresas e pessoas que já não têm qualquer património e a quem não vale a pena cobrar uma dívida em tribunal. Esta definição de caloteiros, no entanto, peca por ser imprecisa. Caloteiro é aquele que dá um calote, ou seja, alguém, pessoa ou empresa, que pede dinheiro emprestado e não o devolve, compra um bem ou um serviço e não o paga, encomenda um trabalho e usa todas as artimanhas, incluindo a força, para não o remunerar como combinado.
Nesta definição alargada de caloteiro, o próprio Estado — incluindo governo, autar- quias e institutos públicos — devia vir em primeiro lugar na lista. O Estado acumula dívidas atrás de dívidas porque não paga aos seus fornecedores a tempo e horas. As dívidas às farmácias, aos empreiteiros de obras públicas e a to dos os fornecedores de serviços prolongam-se por meses e anos sem que os credores tenham qualquer meio à sua disposição para exigir o pagamento do que lhes é devido no prazo combinado.
Como qualquer bom caloteiro que se preze, o Estado vai arranjando desculpas, fazendo promessas de que para o mês que vem ou depois das próximas eleições é que vai ser, e as dívidas vão-se acumulando. E, como sabe qualquer pessoa que tenha um diferendo com as Finanças, reclamar dá direito a ameaças de inspecções fiscais. Quem pode, pode, é a filosofia dominante.
E como o exemplo vem de cima (o ministro das Obras Públicas acaba de anunciar que quer suspender durante um ano o pagamento das rendas às Scuts), a prática de dilatar no tempo os pagamentos é hoje generalizada. São cada vez mais raras as empresas que já pagam o que encomendam no acto da entrega, ou mesmo a 30 dias. Os pagamentos a 90 e a 120 dias são prática comum, sobretudo nas grandes empresas que graças à sua posição dominante no mercado podem impor as regras que bem entendem. Os seus fornecedores, que dependem delas para escoar os seus produtos e serviços, calam e amocham. Muitas têm de recorrer a empréstimos bancários com juros elevados para terem dinheiro para pagar salários, que esses têm mesmo de pagos a 30 dias, empréstimos que não seriam necessários se os seus clientes lhes pagassem em tempo útil. É claro que esta prática desonesta e que vicia a realidade da economia não é exclusiva de Portugal, mesmo se nos podemos gabar de termos sido pioneiros — não é por acaso que a palavra para caloteiro, em italiano, é “portoghesi”.


Autor: José Júdice

In: Jornal “Metro” de 17 de Setembro de 2008

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