Lê-se nos jornais e ouve-se nas televisões que a Espanha está à beira de pedir dinheiro emprestado à Europa, acabando com a arrogância dos seus dirigentes, segundo os quais o país não precisa de abonos, assim entendidos. A Espanha sempre se assumiu com a valentia de quem sabe o que quer. E basta conhecer um pouco da guerra civil para se perceber esse sentimento de galhardia, que não permite nenhuma espécie de humildade. Mas é claro que o país do lado tem dificuldades tremendas. E tudo indica que, dentro de breve tempo, pedirá dinheiro emprestado.
Entretanto, espanta-me esse gozo lascivo e tolo com que a comunicação social todos os dias, a toda a hora, anuncia o infortúnio espanhol. Como se o chamado "efeito sistémico" não atingisse outros países, o nosso sobretudo. Mas a inveja pelo vizinho é de longa data. E, pior que tudo, dissimulamo-la com o cinismo e a hipocrisia de quem aguarda o pior. E não há um jornal, um só jornal, ou uma televisão, uma só televisão, que advirtam, esclareçam, comentem, a mão ser superficialmente, o dramático problema espanhol.
Gosto de Espanha e dos espanhóis. Gosto de um número significativo de autores, de cineastas e de actores, de pintores e de arquitectos. Incomoda-me esta pequena abjecção portuguesa, esta tendência para o mesquinho na mesquinhez, como dizia um velho amigo. Na medida directa das nossas dimensões, também temos grandes arquitectos, grandes pintores, grandes poetas e grandes cineastas. Temos a tineta de nos pôr nos bicos dos pés, quando, de facto, não precisávamos. Claro que, ao lado, há grandes jornais e grandes jornalistas; basta frequentar "El País" e "El Mundo", pelo menos, para nos apercebermos da diferença. Acresce que qualquer destes periódicos não oculta nem dissimula as suas tendências políticas e ideológicas. E, pelo facto de assim procederem, nem por isso perdem a credibilidade e a tiragem.
"El País" é notoriamente afecto ao PSOE e às características da Esquerda. "El Mundo", claramente de Direita. Leio ambos, amiúde, com proveito e aprazimento. "El País" é, certamente, um dos grandes e mais respeitados periódicos europeus, tal qual "Le Monde", em França, de cunho de Esquerda; e "Le Figaro", de Direita. Também os leio com prazer e benefício. Independentemente de serem isto ou aquilo, eles são grandes jornais com grandes jornalistas, e com colaboradores de alto coturno, cujas visões e interpretações ajudam os leitores e reflectir melhor.
Em Portugal, a grande rábula da "independência", da "imparcialidade" e da "neutralidade" não passa de isso mesmo: uma rábula; mas uma rábula perigosa porque oculta a natureza verdadeira dos periódicos, aliás quase todos vinculados ao "pensamento único" e à "razão dominante". E demonstram que não sabemos olhar por nós; quero dizer: não nos ensinam a escolher, a descobrir que somos o mesmo e outro. Saber olhar por nós significa que, ao contrário dos espanhóis, por exemplo, deixamo-nos ir nas aparências. Se falo nos periódicos referidos, reparem, é porque nenhum deles é parecido: cada qual possui uma personalidade própria, e trata os seus leitores como pessoas crescidas. Certa ocasião, "Le Monde" fez uma pergunta embaraçosa para si mesmo: para que serve este jornal? A súmula foi constituída pelo seguinte: porque somos necessários. Vocês, pios leitores, acham mesmo que todos os jornais portugueses são, tal como se apresentam, indispensáveis?
Também "Le Monde" tomou, aberta e declaradamente, partido pela eleição de Mitterrand. Teríamos, aqui, a coragem moral de proceder semelhantemente?
A inveja ressentida que nutrimos reflecte a nossa incapacidade de nos reconstruirmos. Somos diariamente mentidos, bombardeados com falsidades, conhecemos os escândalos privados e ignoramos as públicas virtudes, e, no entanto, caímos sempre nas esparrelas que nos montam. Com três excepções, não mais, e não revelo, por enquanto, os seus nomes, os "analistas" políticos obedecem, serventuariamente, ao pensamento dominante; e até talvez não saibam a dimensão da sua servidão. O que é pior, pois denota ignorância e revela uma alucinante falta de seriedade. Eles não arriscam não só porque não sabem: não querem chatices. Mas demonstram grande contentamento.
"Inter lusitanus envidia norma est". Escreveu o general Galba, num relatório encomendado por Nelo, acerca do que se passava na província. A pecha mantém-se, cada vez mais robusta. Regozijamo-nos com os desaires do vizinho; com o facto de um velho amigo ter perdido o emprego; cumprimos os rituais da caridade cristã colocando no saco contra a fome uma garrafa de azeite e uma embalagem de arroz. Perdemos a decência, essa é que é essa. E não vejo que, nos tempos mais próximos, consumidos pelo infortúnio, esgarçados pela desgraça, consigamos mudar o destino. Desculpem, estes desabafos, mas eles pertencem ao espírito comum.
Crónica de Baptista Bastos.
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