quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Elogio do Sud Express - por Francisco José Viegas


Tudo isso aconteceu há muito tempo, quando eu viajava pela Europa de comboio. Tenho saudades dessas viagens, mas sei que não voltam. Eram outro tem­po, há muito tempo. Partíamos sem saber o destino final, havia um inter-rail no pa­pel e outro no coração. Não havia ro­mances de Verão, não havia namoros, não havia depressões, não havia interes­ses que se arrumassem ao canto - havia apenas viagens de Verão, o ronronar do comboio atravessando as paisagens noc­turnas de Espanha antes da madrugada no País Basco, quando atravessávamos a primeira luz de Vitória, antes de nos apro­ximarmos de Hendaye. Velho Sud Ex­press. Não há melancolia nenhuma nes­ta frase. Velho Sud Express sujo, chiando em todas as curvas, falando em luso-francês, atravessando as pontes, inclinado so­bre os rios, despertando memórias. E ve­lho Sud Express ainda onde se fumava nos corredores, se partilhava a comida com desconhecidos, se falava em línguas estranhas (com tantos erros de sintaxe quanto o entusiasmo em conhecer os companheiros de viagem), se liam romances que ficavam esquecidos ou se pas­savam ao passageiro mais próximo.
Tudo isso aconteceu há muito tempo, no tempo em que não conhecíamos ho­téis, nem restaurantes de «comida de fu­são» – igual em todo o lado –, nem lojas de roupa, nem sjx«, nem discotecas onde as bebidas são iguais - tudo igual em todo o lado -, nem ruídos de aeroporto ou viagens law-cost. Só havia esse ruído, o «tan-tan-tan» do Sud Express entre Santa Apolónia ou São Bento e Austerlitz, com mudança em Irún/Hendaye, sob a vigi­lância petulante dos gendarmes franceses, vistos do lado de cá da fronteira por carabineros de tricórnio e farda verde oliva.
Velho Sud Express (1877), museu vi­vo das viagens de adolescentes, quando não havia telemóveis e um telefonema para a família custava uma refeição a me­nos nos vinte e seis dias de viagem—a va­lidade do inter-rail. Entroncamento, Pampilhosa, Mangualde, Vila Franca das Naves, Vilar Formoso, Fuentes d'Oñoro, Salamaca, Medina dei Campo, Vitória, San Sebastian e Irún - e depois Dax, Biarritz, Bordéus, Paris Austerlitz. Dizem-me que a viagem, hoje, é cómoda a partir de Irún, com o TGV francês que che­ga a Paris Montparnasse. Não, não era cómoda a viagem, em carruagens quase históricas, gastas por anos de uso de emi­grações, exílios e viagens de Verão.
Aliás, vínhamos e íamos com os emi­grantes, íamos sozinhos, em grupo ou sem sentido, íamos com mapas, com indica­ções, com guias comprados com antece­dência de meses (estudados ao porme­nor), e também com algum receio de rapazes e raparigas do Sul da Europa que chegavam a Paris para ver o mundo. Eu preferia sair de Austerlitz e seguir logo pa­ra a Gare du Nord, de onde se saía para a Escandinávia, a Alemanha ou a Holan­da. Paris no regresso, só, para cumprir ro­teiro. Mas, no regresso, aquelas carrua­gens do Sud Express eram a nossa pequena pátria. Trazíamos livros, postais, uma T-shirt comprada em Copenhaga, um poster comprado num museu de Amesterdão, e também necessidade de banho, de uma refeição (tínhamos passa­do vários dias a comer bolachas, iogurtes, conservas, queijo e pães de ocasião).
Nós, os do inter-rail desses anos (setenta, oi­tenta), fomos cosmopolitas por acaso, ciosos do passaporte e dos guichets de ex-change money onde desconfiavam das nossas notas de mil ou cinco mil escudos, trocadas com solenidade e pavor, receo­sos das contas em florins, coroas, libras, francos ou marcos. O mundo, na verda­de — feitas bem as contas -, era mais difí­cil. Ligeiramente mais difícil com essas formalidades de fronteira, de câmbio de moeda e de controlo policial. Mas era o mundo. O mundo lá de fora, o mundo que fazia de nós cosmopolitas mal atra­vessávamos Fuentes de Oñoro a bordo do Sud Express. Velho e sujo Sud Express.
(in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo – Agosto 2007)

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