quinta-feira, 10 de maio de 2012

Um tiro contra o coração da Europa.


A NARRATIVA da informação, na rapidez fragmentária e, às vezes, obessiva, do seu discurso, promove a banalização do mal, rasura crimes contra a dignidade do homem da fotografia do quotidiano, impõe a desumanidade como modelo político inevitável. Quem desatar os nós da violência social, padronizada pelo catecismo neoliberal – responsável, em primeira e última análise, pela crise e prenúncio de uma certa morte civilizacional – depressa percebe que é na informação, cuja cedência aos interesses financeiros amplamente engordados pela desgraça coletiva é uma infâmia, que se joga a manipulação de um pensamento único impondo a inevitabilidade da pobreza e da fragilidade social no horizonte dos dias a haver. Esta retórica de uma crise fatal como um destino, desvaloriza tudo aquilo que é comum à humanidade, seleciona a realidade da vida de acordo com critérios subjugados a interesses restritos, contra os direitos de todos, e pouco se detém nos casos dramáticos que dão a imagem de um país e de um tempo. Às vezes, de passagem, surge a fotografia de um drama, subsídios avulsos aonde levam percursos de vida em transe de angústia e desespero, como aqueles que, protestando contra a iniquidade e o vazio, contra a ausência de liberdade ou os infernos abertos no chão da vida, se imolam pelo fogo, em protesto contra o mundo. No outro dia, uma dessas notícias passou como epifenómeno da realidade grega, mas é metáfora perfeita para a aldeia global que a Europa, em parte, representa. Um farmacêutico reformado, cercado pelas dívidas e pelas penalizações sociais da reforma, deu um tiro na cabeça, em pleno dia, na Praça Syntagma, em Atenas, bem defronte do edifício do Parlamento. O macabro acontecimento tem um iniludível sentido simbólico, o fim da linha de uma vida na praça da democracia. Dimitris Christoulas, de 77 anos, – que deixou uma carta onde se lia: “Não encontro outra solução (senão o suicídio) para acabar dignamente, antes de ser obrigado a remexer em lixeiras para me alimentar” –, não disparou apenas contra si – atirou também a matar ao coração da Europa dos tecnocratas financeiros mascarados de políticos, serventuários dos mercados e da sua ditadura. Como no poema de Jorge de Sena, “não sei se a sua morte foi ou não em vão”. O caso humano passou como um ato individual, de desespero pessoal; outros dirão, encolhendo os ombros, que não foi mais do que desadaptação à vida, como se vida fossem os dias de angústia de Dimitri. Mas era bom que pensásssemos um pouco nas circunstâncias que levaram Dimitri a puxar o gatilho. O clamor de revolta social é latente e comum ao sul da Europa, por muito que os executores das políticas da Troika (dizem-se alunos aplicados) finjam ignorar a extensão do drama e se enredem em contradições (como aconteceu entre Gaspar e Passos) para explicar os calendários dos roubos de direitos aos cidadãos. Há dramas encobertos, a fome alastra a sua mancha, a morte visita mais depressa os que, tendo quase nada, olham com pressa para o fim. Os mais velhos e pensionistas, castigados por demorarem tanto tempo a morrer, são vítimas privilegiadas da razia social. Emboa não se vejam, há muitas armas apontadas às cabeças. E a Praça Syntagma pode estar à nossa beira. Puxar o gatilho contra os indefesos e mais frágeis da sociedade tornou-se um desporto da política. Contra os cidadãos encostados à parede da vida. Contra o futuro. As intermitências da morte acenam ao correr dos dias.

Crónica de: Fernando Paulouro Neves

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