Quem diria que baixar drasticamente os preços de bens essenciais seria o princípio de um motim que acabaria por misturar luta de classes, guerras de concorrência, batalhas ideológicas e até promessas do governo de criar leis para regular campanhas inesperadas como a que o Pingo Doce promoveu neste 1.o de Maio? Pelo segundo dia consecutivo, o grupo Jerónimo Martins é o centro de todas as atenções e a resposta chega em jeito de desafio: “Esta foi a primeira de outras acções comerciais que o Pingo Doce levará a cabo este ano, no âmbito da sua decisão de reforçar as oportunidades de preço para os consumidores portugueses e assim apoiá-los na gestão de um orçamento familiar cada vez mais pressionado”, contou ao i fonte do grupo.
Críticas e ataques vindos dos sectores industrial, agrícola ou do comércio, dos sindicatos ou da esquerda parlamentar pouco impacto vão ter nas próximas campanhas que a cadeia quer promover. Até porque o balanço não poderia ser mais positivo, segundo o grupo Jerónimo Martins: “O grande interesse e entusiasmo demonstrados pelos consumidores, no território continental e na Madeira, que se traduziu numa grande afluência às lojas, superaram em muito as nossas expectativas, tanto mais que apenas fizemos comunicação da acção dentro da loja e no próprio dia.”
E é essa a imagem que vai ficar, defende Susana Costa e Silva, directora do departamento de Marketing da Faculdade de Economia e Gestão da Universidade Católica do Porto. Pesando os prós e os contras, o que os consumidores vão reter no fim é “uma atenção sensível às dificuldades que atravessam os portugueses neste momento”, explica a especialista, sublinhando a importância de esta baixa de preços incidir nos bens essenciais. Os ataques e as reacções a esta iniciativa não terão, contudo, surpreendido o grupo. Pelo menos é isso que pensa Susana Costa e Silva, que já trabalhou na Jerónimo Martins e para quem uma campanha desta natureza prevê sempre tanto as repercussões positivas como as negativas.
CARICATURA E são os efeitos negativos que devem ser agora avaliados, defende o sociólogo Elísio Estanque. Se fosse um cartoon, a campanha do Pingo Doce teria de um lado um homem poderoso a estalar os dedos e do outro uma multidão de esfarrapados a correr na sua direcção e no meio um punhado de sindicalistas frustrados. A caricatura do investigador do Centro de Estudos Sociais serve para censurar um “gesto deplorável” do grupo Jerónimo Martins, que teve como “única utilidade” mostrar que há uma camada da população portuguesa que está à beira do limite. “Esta acção não pode ser retirada do seu contexto, que é a crise e a data, que é o 1.o de Maio.”
São dois dados importantes – explica o investigador da Universidade de Coimbra –, para concluir que uma iniciativa “aparentemente generosa” pode igualmente ter uma leitura política e ser encarada como uma investida contra os sindicatos: “É legítimo interpretar esta campanha como uma mensagem para a classe sindical e que se resume na tentativa de demonstrar que as passeatas do 1.o de Maio não correspondem às necessidades dos portugueses.”
Só que, adverte o sociólogo, no meio desta guerra estão os mais vulneráveis, os que, “não sendo pobres”, estão “muito próximos” da pobreza: “São que vivem na instabilidade e temem o futuro, são os que, curiosamente, só têm saldo bancário porque estamos no início do mês e o planeamento desta campanha não foi alheio a este pormenor.”
Seja qual for o objectivo desta campanha, Elísio Estanque diz que o resultado é assustador: “Numa situação de medo e de angústia, a multidão perdeu o controlo e o civismo, revelando que valores como a ordem democrática, a ética ou o sentido de organização não estão afinal incorporados na nossa sociedade”, conclui.
OPORTUNIDADES Para o secretário-geral da Associação de Defesa do Consumidor (DECO), trata-se de mais uma campanha agressiva de uma grande superfície, que “obviamente” tem mais sucesso em tempos de crise: “Os consumidores, naturalmente, aproveitaram uma oportunidade, antecipando as suas compras do mês.” De um lado ou do outro não há qualquer comportamento a condenar, esclarece Jorge Morgado, que não deixa contudo de criticar a forma “pouco correcta e pouco sustentável” como a campanha foi conduzida.
“O que não nos pareceu normal foi a falta de segurança durante esta acção, que poderia ter provocado incidentes graves”, critica o responsável da Deco, censurando ainda o apelo ao consumo precipitado: “É evidente que as pessoas não fizeram as compras em condições adequadas, não tiveram tempo para fazer listas de prioridades ou comparar preços e o consumo responsável exige tempo”, remata. Resta só perceber se a iniciativa do Pingo Doce vai fazer escola, já que a Ikea Portugal anunciou ontem uma campanha com descontos imediatos de 50%, em mais de 300 produtos até 13 Maio.
Nota: É inevitável que isto vai acontecer...
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