sexta-feira, 1 de junho de 2012

A insustentável leveza da mordaça.


COMO naqueles filmes do Drácula em que se abrem sepulturas na sombra da noite e das tumbas saem figuras mórbidas, premonições de morte, que depois sobrevoam o tempo para inquietar os comuns e bons mortais, a realidade dos dias que vivemos, agora com estranhas coincidências, parece invadida também por súbitos fantasmas que nos deixam no ar ameaças de um passado de trevas.

Na ficção cinematográfica, essas criaturas tenebrosas, que chupam “o sangue da manada” e se escondem quando a luz do dia começa a despontar, regressando aos seus túmulos, para um repouso que só a noite, densa e profunda, interrompe; nos passos da realidade dos dias que vivemos, as figuras terríficas que existem para nos atormentar a vida, vivem em escuras teias ideológicas e é à luz do dia que fazem as malfeitorias dos seus longuíssimos cadernos de encargos.

Estes fantasmas habitam a política, ungidos pelos deuses do cifrão exercem o poder e, ao contrário das lendas dos vampiros, que geralmente acabam mal, o costume diz que mau grado as patifarias não lhes acontece nada, continuando a reproduzir a sua faina de assombração dos dias. Dirão alguns leitores que se trata de delírios de imaginação, de que a sétima arte é fértil, que não tem a ver com a substância dos dias, mas com uma (ir)realidade quotidiana (a expressão é de Umberto Eco), que se gosta de glosar sempre que se defrontam tempos difíceis e de fundo pessimismo. Nada de mais errado. Deviam saber, esses incautos cidadãos, que a realidade é, por vezes, mais imaginosa do que a própria imaginação, e, talvez por isso, talvez, tantas vezes hoje a gente se interrogue, face ao desconcerto dos dias, com a perplexidade: como é possível uma coisa destas? Quando caímos no concreto dos dias logo percebemos que é possível, é.

A realidade é sempre desfigurada, quando há ofensivas contra a liberdade de um – ou de todos. É dos livros. Um amigo meu, que leva a vida a lavrar palavras, costuma até dizer com ironia que a democracia é uma chatice, e, por extensão, chatice maior será a liberdade de imprensa. Não é por acaso que é nessa matéria sensível que ditadores grandes ou de trazer por casa, costumam atuar com persistente eficácia, instituindo o medo como chantagem contra o grave perigo que é, no jornalismo, o pensamento crítico em voz alta. Um desses personagens, agora no túmulo da história, costumava até dizer com hipocrisia beata que tudo aquilo que não era publicado – pura e simplesmente não existia.

O folhetim que agora se instalou na atualidade política, sobre alegadas pressões do ministro Miguel Relvas a uma jornalista do “Público”, e o tom das ameaças que a direção do jornal confirma, configura, por si só, uma gravíssima situação. Estava uma notícia em causa, que acabou não publicada, por critério editorial. Estranha notícia que motivou tão destemperada reação ministerial (já agora, bem gostaríamos de a conhecer!)... Se a isso acrescentarmos que a matéria em causa tratava precisamente das noticiadas relações do chefe das Secretas com o ministro Relvas (troca de informações) e que o alegado teor da pressão sobre a jornalista foi a ameaça de divulgação de factos da sua vida privada, temos o quadro de um pântano insustentável do ponto de vista da mínima ética política. O caso está na ERC. Veremos se a Assembleia da República, tão celebrada na anterior legislatura em comissões de inquérito, atuará, como e quando. Enquanto isso, já sabemos que estes fantasmas do antigamente não regressarão aos túmulos e continuarão a pairara sobre os dias, com o seu caderno de malfeitorias contra nós todos. É a insustentável leveza da mordaça que está aí. E já nem bate à porta com pezinhos de lã...

Fernando Paulouro neves

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